O cheiro do pão quente que guarda as manhãs da infância

Há cheiros que não são apenas cheiros. São portais. O do pão quente, acabado de sair do forno, é talvez o mais fiel deles todos. Basta senti-lo, mesmo que de raspão, para que a infância inteira se desdobre diante de mim como um livro antigo que se abre sozinho na página certa.

O pão quente tem esse dom: guarda memórias em fatias invisíveis. Traz de volta manhãs em que eu ainda não sabia nada de relógios, nem de pressas, nem de boletins de notas. Manhãs em que o mundo se resumia a uma mesa pequena, um copo de leite e a espera pelo estalar da crosta dourada que se desfazia em migalhas pelo chão da cozinha.

Esse cheiro é, ao mesmo tempo, presente e passado. Está aqui, agora, na rua quando passo pela padaria, mas também está lá atrás, na infância, a segurar pela mão uma menina que ainda não sabia que a vida, mais cedo ou mais tarde, lhe iria pesar nos ombros. O pão quente sabe disso tudo e, generoso, devolve-me por segundos essa leveza que esqueci.

Talvez seja por isso que nunca consigo comprar pão sem sorrir. É um gesto banal, mas para mim é quase ritual. Enquanto espero, olho os sacos a encher-se e penso que ali dentro vai um pedaço de história — não apenas farinha, sal e fermento, mas memórias compactas, capazes de atravessar décadas e continuar a cheirar ao mesmo conforto.

Há quem diga que somos feitos de escolhas. Eu suspeito que também somos feitos de aromas. E que alguns, como o do pão quente, são a versão mais próxima que temos de uma eternidade. Porque não importa o tempo que passa, não importa o que cresce ou o que se perde: sempre que esse cheiro me encontra, volto a ter cinco anos e a acreditar que tudo o que preciso cabe numa mesa pequena, ao lado de quem amo.

E talvez seja por isso que, mesmo em dias difíceis, quando nada parece caber no lugar certo, basta uma padaria a funcionar como deve ser para me devolver a fé no mundo. O pão quente não promete soluções. Mas promete colo. E, sejamos honestas: há dias em que isso vale mais do que qualquer resposta.

No fim, percebo que é verdade: o cheiro do pão quente guarda as manhãs da infância. E, de cada vez que o encontro, devolve-me a certeza de que, por mais adulta que eu seja, nunca vou deixar de ser a menina que acreditava que a felicidade vinha servida em fatias, ainda mornas e cheias de manteiga, espalhando migalhas pelo caminho.


PB

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