Não quero ser metade de nada ...
Não quero ser metade de nada, porque já nasci inteira numa aldeia onde até as pedras sabiam o meu nome. Metade de gente, diziam os velhos, é quem esquece a própria sombra — e eu, desde criança, aprendi a conversar com a minha como se fosse parente distante.
As metades sempre me pareceram maldição de família: o tio que morreu de meio amor, a vizinha que passou a vida esperando meia carta que nunca chegou, o cão que uivava à lua só pelo lado esquerdo. Eu não. Eu carrego comigo as luas cheias, os amores desmedidos, as febres que não cabem em meio termómetro.
Não quero ser metade de nada, porque nasci numa manhã em que o sol se dividiu em duas metades e os pássaros, atordoados se esqueceram de voar. Dizem que naquele dia as águas do rio pararam no meio do curso, e as pessoas da aldeia ficaram presas entre a fome e a abundância, entre o antes e o depois. Cresci vendo essa gente viver de metades: meio pão, meio riso, meia vida.
Mas eu recusei-me e, logo cedo, carreguei em mim um coração inteiro, tão pesado que às vezes parecia outro corpo. As mulheres do vilarejo diziam que eu não caberia no mundo, porque só os que aceitam ser metade sobrevivem à rotina. E eu, teimosa, continuei inteira — mesmo quando me apaixonava por fantasmas que só existiam numa das metades do tempo, mesmo quando dançava com sombras que ainda não tinham corpo.
Carrego este destino: ser sempre toda, mesmo no meio da quebra. Se amo, amo como quem acende uma cidade inteira numa noite sem lua. Se choro, choro com lágrimas tão largas que chegam a afogar os peixes.
E quando a morte vier — porque ela virá, inteira, ainda que disfarçada de meio suspiro — quero recebê-la assim: inteira no meu espanto, inteira no meu silêncio. Pois ser metade de nada é aceitar que nos arranquem a alma pela raiz. E eu, que já nasci árvore desmesurada, só sei viver oferecendo a sombra completa.
PB
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