Ensaio sobre o medo - revisitar

 

O medo, esse visitante orgânico e silencioso que se senta ao nosso lado mesmo quando estamos sós, que não pede permissão, mora no nosso peito e faz dele tantas vezes a sua casa. O medo que muitas vezes nos protege, que faz com que olhemos duas vezes antes de atravessar a rua, que nos ensina que o fogo queima, que a queda machuca e que a perda dói. O medo que tantas vezes nos prende, com algemas invisíveis e nos faz calar quando deveríamos gritar e recuar quando tudo à nossa volta pede avanço. O medo que vê monstros onde há apenas sombras, que cria abismos onde bastava um simples passo. O medo que vem de dentro: o medo de falhar, de não sermos vistos, de não sermos amados. O medo que cresce no escuro e que o mundo impõe: o medo do outro, do estranho, do incerto. O medo que nos transforma em muros, que nos encerra em fortalezas sem janelas, achando que estamos a salvo, quando apenas estamos sós. Um medo líquido, como diria Bauman, que escorre pelas frestas do dia e se infiltra nos sonhos, que evapora das telas e se condensa nos olhos. Não tem forma nem rosto — apenas presença. Está em todo lugar e em lugar nenhum. O medo moderno não vem do que se conhece, mas do que não se controla. É o vazio que sobra quando tudo parece possível, mas nada é certo. É o medo de perder o que não se tem. De ser esquecido no meio da multidão. É o medo de falhar num mundo que exige sucesso contínuo, felicidade visível, perfeição moldada em montras digitais. Já não é o lobo na floresta, mas a solidão na festa. A ausência num mundo Hiper conectado. Um medo que não ameaça com gritos, mas com a instabilidade: O emprego que se vai. O amor que não dura. O corpo que envelhece. A verdade que escapa. O medo na modernidade líquida não paralisa —acelera. Empurra ao consumo, à pressa, à comparação constante. E nessa pressa, esquecemo-nos de perguntar: do que é que temos mesmo medo?

Talvez, no fundo, seja do silêncio. Do encontro com o eu que ficou esquecido. Porque encararmo-nos é o mais sólido dos gestos. E não é que o medo não tenha razões. Ele sabe onde pisar. Sabe que o coração é frágil. Que a esperança quebra. Que amar é expor-se e que o medo é o que sobra quando o amor já não encontra lugar. Porque o medo não precisa de ser inimigo. Pode ser um sinal de que algo importa. De que há muito a perder, mas também muito a ganhar. Que o risco é irmão da liberdade. E ao contrário de Fernando Pessoa, para quem o medo não é social, mas metafísico, o medo pode ser um convite à coragem. Um lembrete de que estamos vivos. Mas para Pessoa o medo é o pavor de ser, o espanto de ter um corpo, um nome, um pensamento. É o desconforto de acordar todos os dias dentro da própria pele ou de um dos seus fantasmas. Mas viver é também isso: caminhar com medo, mas continuar. Sentir o tremor nas pernas e, ainda assim, dar o primeiro passo. Mas para Pessoa que escreve com as mãos cheias de nevoeiro o medo aparece associado à angústia existencial, à solidão, ao desconhecido e à fragmentação do eu. “A vida dói tanto, tanto que me dá medo de a viver”. E multiplicando-se em vozes, para suportar o peso do eu, vai criando heterónimos como quem ergue muros contra o abismo, à passagem do tempo e ao inevitável da morte, gerando um medo silencioso e constante. Talvez por isso o medo seja só uma maneira de simplificar a alma. De nos deixar libertos dos infinitos pormenores do corpo, libertos do nosso lado mais vulnerável, construindo um caminho para o acolher. Tal como para Saramago, que com a sua lucidez cortante e as suas parábolas como espelhos nos diz que o medo é uma construção. Um teatro de sombras onde os poderosos dirigem e os frágeis representam. No livro “O Ensaio sobre a cegueira”, não é o escuro que nos devora — é a indiferença. Nas “intermitências da morte”, é a própria finitude que assusta menos do que a ausência dela. O medo, para Saramago, não nasce do desconhecido, mas do excesso de controlo. E há uma rebeldia na sua escrita — um convite para recusar o medo imposto e reinventar o humano no meio do caos. O medo, para Saramago, não é um monstro de dentes afiados escondido debaixo da cama — é mais subtil, mais denso, mais real. O medo caminha de mãos dadas com o silêncio das massas, com os olhos que desviam, com a cabeça que se curva … Para Saramago, o medo é humano, sim. Mas não é destino. É obstáculo. É escolha. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." — E ver o medo e nomeá-lo, é o primeiro gesto de libertação. Saramago denuncia como o medo pode desumanizar, fragilizando as relações humanas e perante isto, parece perguntar: o que resta de humano quando o medo domina?

Mas talvez ninguém fale do medo com tanto pudor e ternura como Valter Hugo Mãe. Nele, o medo tem corpo de criança, cheiro de casa antiga, nome de mãe sussurrado na noite. É um medo que sangra em silêncio, que se entranha nos gestos pequenos — um copo que cai, uma ausência que perdura. Na sua escrita, não se explica o medo — vive-se. Como quem tateia a dor com os dedos. Como quem ama mesmo com medo. Porque há beleza nas coisas vulneráveis, há poesia na ferida. “somos todos demasiado pequenos para o medo que temos”, diz ele. E nesse excesso, nesse desajuste entre o tamanho da alma e a largura do mundo, encontramos a arte. Encontramos a palavra que tenta tocar o indizível. O medo, afinal, é o que nos torna humanos. Ele existe onde há consciência, onde há memória, onde há amor. Quem não tem medo não ama, não sonha, não arrisca. O medo não é o oposto da coragem — é a sua origem, é uma infância que não passa, uma memória que treme, é o nome que não se diz, o amor que não se declara, a vida que se adia, é o que impede e o que protege, é o pai que não voltou, a mãe que não disse, o abraço que faltou. O medo diz-nos o que importa. Diz-nos que estamos vivos. Que somos frágeis. E por isso mesmo, imensamente belos.


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