...


Não pensamos muito nisto, ou se pensamos não o dizemos abertamente, mas eu penso. No fim. No fim aonde todos vamos chegar, no tempo último que nos vai ser dado viver, quando o arrendamento do corpo que habitamos chegar ao fim.  

E como penso nisso, quando chegar o meu fim, fiquem a saber que cedo todos os meus órgãos à ciência e o que sobrar incinerem, misturem com terra e plantem-me sob um carvalho, daqueles séniores que contam histórias e que, deste modo, contará também a minha. Devolvam-me à terra e às árvores que são a minha paixão. 
Quanto à cerimónia do meu adeus, quero que seja ao final do dia com um bom tinto na mão. Relembrem-me, cantem as minhas músicas favoritas e leiam-me Pessoa. Chamem todos os amigos e alunos e ex-alunos e contem, celebrando-me, as histórias que viveram comigo. E quando a noite chegar, façam uma roda à volta do carvalho onde me depositaram e recordem-me como sempre fui: livre! 

Recordem que sendo Engenheira me dediquei - sem hesitar - ao Ensino e fiz dele a minha razão de ser. Dediquei-me a todos e a cada um de coração. Amei cada um dos meus alunos como filhos, enxuguei lágrimas, contei histórias, zanguei-me em dias maus e exigi dedicação todos os dias - a mesma que lhes dedicava! Mas também me ri muito, abracei muito e fui aconchegada quando a vida me correu menos bem! Fui, por isso mesmo, professora feliz, por opção e missão. E se o mundo perdeu uma Engenheira, quero acreditar que ficou em vantagem porque ganhou uma professora que amou, até ao último dia, a sua profissão. 

Quando a noite chegar, façam uma roda à volta do carvalho onde me depositaram e recordem-me como a pessoa que mais livros carregava consigo para todo o lado, que nunca tinha livros que chegassem por mais pilhas que se amontoassem no chão do escritório e do quarto ... e da sala, e que ainda assim dizia "quem me conhece dá-me livros" e, por isso, pedia sempre mais um como prenda de natal. A pessoa que media a sua riqueza pelo número de artigos científicos que lia e que nunca se cansou de estudar e aprender.

Quando a noite chegar, façam uma roda à volta do carvalho onde me depositaram e riam-se, façam barulho, falem e celebrem a nossa amizade. Eu não quero ir descansar em paz meus amigos! Quero desassossego, gente vibrante e energia contagiante na nossa última noite juntos! Quero que me recordem como sempre fui: alegre e feliz!! Por isso, ergam os copos bem alto, partilhem aqueles petiscos de que eu tanto gostava e cantem ruidosamente ... 
Eu não quero ir descansar em paz meus amigos! Aliás, por mim eu nem descansava. Fazia só uma pequenina sesta 


 

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